A cicuta de Sócrates
não foi um erro de percurso, mas a consequência lógica de um sistema onde a
verdade é submetida ao escrutínio de quem não sabe o que é verdade ou a procura.
Há uma romantização quase infantil, repetida à exaustão por
analistas de redação e cientistas políticos de fim de semana, de que a
democracia é o remédio universal para todas as mazelas humanas. Esquecem-se, ou
fingem esquecer, que a cena fundadora da política ocidental não é um abraço
coletivo em praça pública, mas um assassinato judicial. Sócrates, o pai da
filosofia, não foi calado por um tirano sanguinário de terras bárbaras. Quem
lhe serviu a cicuta foi o "povo", o sagrado demos, no pleno exercício de sua vontade majoritária. A Atenas que
se orgulhava de suas liberdades usou as urnas para extinguir a inteligência.
Platão, atônito, aprendeu ali a lição que insistimos em ignorar dois milênios
depois: a democracia pode ser, e frequentemente é, apenas a tirania legitimada pela contagem de cabeças.
Em A República,
Platão não tratou a democracia como uma "entidade inquestionável",
mas como uma doença autoimune da pólis. Para ele, o sistema é um convite aberto
ao caos. O império da opinião (doxa),
governado pelo humor flutuante das massas, não abre alas para o estadista, mas
estende o tapete vermelho para o demagogo. Não o tirano clássico, que toma o
poder pela espada, mas o déspota insidioso, manufaturado pela lisonja e pela
retórica barata. O raciocínio é devastador: quando a verdade
precisa ser validada pelo voto da maioria, a mentira torna-se, inevitavelmente,
política de Estado. Se a lógica cede lugar à emoção histérica, a
política degenera em espetáculo. A tirania não é o oposto da democracia;
paradoxalmente, é o seu filho natural, nascido no momento exato em que a
multidão decide que sua vontade vale mais qualquer lei ou instituição.
É preciso ter a coragem de dizer o óbvio ululante: a
maioria pode ser, sim, tirânica. Benjamin Franklin, com a lucidez que falta aos
nossos constituintes de 88, resumiu: "Democracia são dois
lobos e uma ovelha decidindo o que teremos para o jantar".
Esse cenário de caos organizado encontra sua explicação
perfeita na profecia de José Ortega y Gasset. O filósofo espanhol, em A Rebelião das Massas, diagnosticou o
surgimento da "hiperdemocracia". Grosso modo, é o império do
homem-massa: um indivíduo esvaziado de história, satisfeito com sua própria
mediocridade, que se sente no direito de impor seus desejos vulgares como se
fossem leis universais. O homem-massa é a criança mimada da história; ele exige
todos os direitos da civilização, mas recusa qualquer dever ou freio moral. Ele
não quer debater; ele quer impor. E ai de quem discordar do coro — será
cancelado, processado ou silenciado pelo tribunal da virtude pública.
Hoje, os demagogos previstos por Platão sofisticaram seus métodos. Não precisam mais gritar "Barrabás" na Ágora; basta manipular o algoritmo. O ciclo contínuo de notícias e a polarização de torcida organizada criaram o ambiente perfeito para a degradação: a razão afogada pelo ruído e a verdade diluída até se tornar irreconhecível. Vivemos sob a ilusão de liberdade porque podemos escolher entre duas opções de servidão.
A saída não é "mais democracia", como repetem os papagaios do progressismo, mas o resgate da República — no sentido estrito de Rule of Law, o governo das leis e não dos homens. Uma ordem onde instituições sólidas e a alta cultura protejam a sociedade dos caprichos da turba. Enquanto continuarmos a acreditar que a vontade de 50% mais um é sinônimo de justiça, continuaremos a servir a cicuta aos nossos melhores, aplaudindo bovinamente a nossa própria ruína.
Cópia de Marcos Paulo Canderoro in: https://candeloro.substack.com/p/a-tirania-dos-mediocres