Título: A Aventura do Dinheiro: Uma Crônica da História Milenar da Moeda
Autor: Oscar Pilagallo
PILAGALLO, Oscar. A Aventura do Dinheiro: Uma Crônica
da História Milenar da Moeda. São Paulo: Publifolha, 2009.
1 — Papai, o
Que É Dinheiro?
"O que é dinheiro?" é a pergunta do garoto ao pai, o senhor Dombey, personagem-título do romance Dombey and Son, do inglês Charles Dickens, publicado em meados do século 19. Quando a história começa, Dombey é rico e orgulhoso; perto do fim, está falido e humilhado.
Dinheiro é uma metáfora, ou
seja, uma coisa que significa outra coisa. Dinheiro mesmo é aquilo que ele pode
comprar; aquilo que custou ganhá-lo.
Palavras e moedas têm algo em
comum: dependem de consenso e só circulam onde são conhecidas. Ambas correm o
risco de ser desvalorizadas: a primeira pela inflação, a última pelo clichê.
Cunhe-se uma boa frase, e ela enriquecerá a língua; cunhe-se uma boa moeda, e
ela enriquecerá a sociedade.
"O dinheiro tem esse nome
porque existe não por natureza, mas pela lei, e porque está em nosso poder
mudá-lo ou torná-lo inútil."(Aristóteles)
Na Bíblia, há
referências ao dinheiro ou à riqueza. "É mais fácil um camelo entrar por
um buraco da agulha do que o rico se salvar"; "Ninguém pode servir a
dois senhores. Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro". Alexander
Pope, poeta e satirista inglês do século 18, que era católico, disse:
"Percebemos o pequeno valor que Deus dá às riquezas pelas pessoas a quem
Ele as entrega".
A relação entre o divino e o
monetário se dá também no campo dos símbolos. Observe a hóstia e a moeda. Para
Marc Shell, professor de literatura na Universidade de Harvard, hóstia e moeda
têm o mesmo formato e são fabricadas de maneira semelhante, prensadas entre
chapas de metal. Ambas ostentam insígnias. Ambas têm caráter ambivalente. Por
fim, hóstia e moeda dependem de uma crença absoluta: se determinada comunidade
duvidar que elas têm o valor que lhes é atribuído, então serão reduzidas apenas
à condição física de trigo e metal.
Mais que o dinheiro e os juros,
no entanto, é o ouro a representação da riqueza mais associada à ganância. Na
mitologia grega, a história mais conhecida é a do rei Midas. A posse do
dinheiro pode despertar a avareza e estimular a aspiração ao poder.
Enterrar tesouro é a
manifestação mais explícita da avareza.
Freud analisa o amor ao
dinheiro com a prisão de ventre. São dois casos de retenção: no primeiro caso
de riqueza; no segundo, de fezes. O símbolo mais popular de poupança é um
porco, cuja imagem próspera está associada à imundície e à voracidade.
Para o filósofo, o meio-termo
ideal em relação ao dinheiro é a liberalidade, entendido liberal como aquele
que "gasta de acordo com suas posses e objetivos certos". Poeta,
ensaísta e dicionarista inglês, Samuel Johnson (para quem "só um imbecil
escreve que não seja por dinheiro") mostrou que entendia também de
economia ao perceber corretamente que dinheiro não é riqueza, mas apenas sua
representação.
Materiais já usados como
dinheiro: pregos, manteiga, chiclete, cigarro, sementes de cacau...
2 — A Balança e
a Efígie
José, filho de Jacó, ia ser
queimado pelos seus irmãos. Em vez disso, vendem-no por vinte moedas de prata.
A história bíblica é bastante conhecida. Está contada no Gênesis, o primeiro
dos cinco livros do Antigo Testamento. E contém um erro, pois na época ainda
não havia moeda.
Sólon é o estadista que, em
meados do século 6 a.C., promove as reformas que põem fim ao controle total da
aristocracia sobre o governo em Atenas, a cidade-Estado mais importante da
Grécia.
Há quem estabeleça um vínculo entre
declínio da escravidão e moeda, uma vez que, na ausência do dinheiro, alguma
forma de escravidão é praticamente inevitável, enquanto a moeda, se expressar
valores compatíveis com a remuneração do trabalho, pode ser usada para pagar
salários a homens livres. Era o caso de Atenas, onde um dia de trabalho não
especializado custava, em média, 1 dracma. O dracma, cujo nome deriva do verbo
grego que significa "pegar", é a base do sistema monetário do mundo
helenístico, de moedas facilmente reconhecíveis pela indefectível efígie da
coruja, ave associada a Atenas, a deusa protetora da cidade. Com 100 dracmas
tem-se uma mina (mesmo nome usado na Mesopotâmia); e 60 minas valem 1 talento,
também uma medida de peso.
Aristóteles não achava natural
o uso do dinheiro para gerar mais dinheiro. Para ele, a função do dinheiro deve
ser apenas a de tornar todas as outras coisas mensuráveis por um único padrão,
e nesse caso é instrumento de justiça. Quanto a Platão, queria simplesmente
acabar com a moeda, que inviabilizava o exercício da virtude. Pessoalmente,
Sócrates não se preocupava com dinheiro. Sem ofício remunerado, vivia da
herança deixada pelo pai, dinheiro que aliás emprestava a juros, inclusive a
amigos, como Críton, que dá nome a um dos diálogos de Platão.
Se a Grécia é a primeira
civilização transformada pelo surgimento da moeda, Roma dá um passo além e
torna-se o primeiro império construído sobre a moeda. Em vez de dracma temos o
denário, nome que está na origem da palavra "dinheiro". Mas há diferenças
importantes: a emissão passa a ser gigantesca, proporcional aos gastos para a
manutenção da máquina militar e administrativa de Roma; outra é que com o
denário nasce também a inflação.
A frequente referência a
dinheiro nos evangelhos indica que no tempo de Jesus a economia já está
totalmente monetizada até em lugares afastados do centro do poder, como a
Palestina. Entre as várias menções, talvez a mais conhecida seja a das trinta
moedas de prata que Judas recebeu pela traição a Jesus.
3 — Campônios,
Mercadores, Banqueiros
As Cruzadas.
Para a história da moeda, interessa registrar que esse tipo de aventura custa
dinheiro e precisa, portanto, ter algum esquema de financiamento. Motivados
pela indulgência prometida pelo papa (para não mencionar o objetivo de
conquistar terras), os nobres desenterravam seus tesouros, vendiam bens,
levantavam empréstimos, liberavam servos mediante pagamento, enfim, faziam a
moeda voltar a circular. E para quem estivesse endividado o estímulo para
participar das Cruzadas era ainda maior.
A máquina das Cruzadas era
vitalizada por uma elite de cavaleiros, chamada Ordem dos Templários,
organização criada em Jerusalém no início do século 12, logo após a primeira
Cruzada. Os cavaleiros tinham rígida estrutura militar e, ao serem aceitos na
ordem, faziam votos de castidade e, o mais importante, de pobreza. Com esse
perfil que combinava segurança e honestidade, não demorou para que se tornassem
depositários das fortunas dos pobres que se juntavam às Cruzadas.
A economia monetária na Europa
estava de volta, e com pelo menos uma grande vantagem sobre a existente no
Império Romano: os algarismos agora eram arábicos, uma novidade lá chegada no
inicio do século 13. A importância dos números arábicos sobre os romanos pode
ser vista no exercício de soma: quanto é MDCXXXIV mais CCCLXVI? Agora escreva
1.634 e, na linha de baixo, 366. Chega-se facilmente a 2.000.
No Êxodo está escrito: "Se
emprestares algum dinheiro aos do meu povo, que são pobres entre vós, não o
apertes como exator inexorável, nem o oprimas com usura". No Deuteronômio,
a mensagem é a mesma: "Não emprestarás com usura a teu irmão, nem
dinheiro, nem grão, nem qualquer outra que seja, mas somente ao
estrangeiro". São Tomás de Aquino, no século 13, também condena a usura. O
conceito de usura mudou, na medida em que a nova realidade econômica se impunha
sobre a ortodoxia religiosa. Inicialmente, usura queria dizer apenas juros; aos
poucos, passou a designar juros exorbitantes, aqueles que ultrapassassem em
muito os 12% ao ano, o teto fixado pelo direito romano.
O protestantismo, ao contrário
do catolicismo, não condenava os juros, e isso era tudo o que os espírito
empreendedores do século 16 queriam ouvir. Calvino questionou o dogma de que o
dinheiro é estéril (não podendo, por si, gerar mais dinheiro) e tentou tirar o
debate econômico da esfera teológica.
Sobre a emissão de moedas, há
um aforismo: "A moeda má expulsa a moeda boa".
Com o surgimento do dinheiro
bancário e a revitalização da cunhagem propiciada pela prata e o ouro da
América, a Europa deixa definitivamente para trás a limitada economia da Idade
Média.
4 — Revoluções
do Papel
Primeiras notas causam
inflação, mas financiam a independência americana e a Revolução Francesa.
Os batavos viam nas tulipas não
apenas a flor ornamental que todos vemos, mas também a grande oportunidade de
fazer fortuna rápido. Os produtores vendiam algo que ainda não existia. O que o
comprador levava era um pedaço de papel que valeria um bulbo quando chegasse a
época da arrancadura. O caso da febre das tulipas é precursor das ondas
especulativas que até se sucedem.
Enquanto a Europa, escaldada
por bolhas especulativas, começava a se pautar por atitude mais conservadora no
terreno monetário, o Novo Mundo, sem ter o que perder, atirava-se em
experimentos que culminariam com a invenção da cédula de dinheiro, o
papel-moeda. O papel, diferente do metal, não tem outro valor além daquele que
lhe atribui a sociedade. Só se aceita um papel como moeda se há confiança de
poder repassá-lo, e pelo mesmo valor.
Os governantes europeus, e o de
Londres não fugia à regra, acreditavam que um país seria tanto mais rico quanto
mais ouro e prata possuísse. Uma maneira de conseguir a riqueza era vender mais
ao exterior do que comprar do estrangeiro. Isso fundamentava a política
econômica denominada de mercantilismo. Em parte para contestar esse raciocínio,
Adam Smith escreve a Riqueza das Nações. Nesse livro enfatiza a mão
invisível, metáfora capaz de corrigir qualquer distorção do sistema econômico.
É o chamado laissez-faire.
Enquanto a Europa se preocupava
com a divisibilidade da moeda, os Estados Unidos queriam apenas multiplicá-la;
havia ali, afinal, mais uma guerra a ser financiada.
5 — Do Ouro ao
Pó
Um dos objetivos aos quais a
alquimia está mais associada é a transmutação de metais , como o chumbo, em
ouro. O desejo de criar ouro pode levar à destruição do próprio metal, pois
deixaria de ser cobiçado, ou seja, deixaria de ser raro.
A história do ouro é bem mais
antiga que a do dinheiro.
A cólera de Moisés tinha mais a
ver com o bezerro, ou qualquer que tivesse sido a imagem, do que propriamente
com o material usado, mas, diante da ambição do cristianismo à ambição pela
riqueza material, parece significativo que a estátua fosse feita justamente do
metal mais associado à condenável ganância.
A partir dos anos 70, as moedas
passam a ser totalmente fiduciárias, quer dizer, dependentes apenas da
confiança que as sociedades depositam nelas. Hoje, qualquer papel-moeda não
lastreado em ouro chama-se moeda fiduciária.
6 — Enquanto
isso, no Brasil
No Brasil, não só os escravos
tinham que improvisar com moedas. Nem mesmo o governador-geral escapava. Mem de
Sá dissera que por falta de moeda, seu ordenado estava sendo pago em
mercadorias. O governador do Rio de Janeiro determinou que o açúcar fosse considerado
moeda legal.
A metrópole, por sua vez,
emitia moedas de cobre para servirem como troco no Brasil. Vinham com uma
inscrição em latim que significava "O cobre é mais próprio para o uso do
que o ouro".
7 — O Princípio
da Incerteza
O dinheiro virtual irá além da
ficção científica?
Moedas globais e privadas
poderão coexistir?
O livro de Philip Dick Blade
Runner, não o filme, tem todos os ingredientes de ficção científica:
colonias em outros planetas, carros voadores, aparelhos eletrônicos que
respondem a comando de voz, brinquedos animados por engenheiros genéticos.
Nesse ambiente em que a tecnologia desconhece fronteiras, contrasta o fato de o
dinheiro e o comércio serem convencionalmente representados pelo dólar o pelo
catálogo de vendas. Em outro clássico da ficção científica, da série Fundação,
de Isaac Asimov, o dinheiro recebe um nome moderno — crédito.
As obras de Asimov e Philip
Dick datam de meados do século 20, quando se disseminou o uso do cartão de
crédito, inovação precursora da tendência de limitar cada vez mais o manuseio
do dinheiro vivo. Hoje, os pesquisadores a serviço das instituições financeiras
estão debruçados sobre o dinheiro eletrônico.
A diferença entre dinheiro
virtual e dinheiro real é mais relevante para quem emite o cartão inteligente
do que para quem o utiliza. Para o portador do smart card, trata-se de
dinheiro comum, com a diferença de ser mais conveniente. Ele
"abastece" seu cartão transferindo um valor de sua conta para o chip
e depois esvazia a memória, isto é, gasta, como bem quiser. Já para a empresa
que emite o cartão há uma grande diferença entre os dois tipos de dinheiro. Ela
poderia criar dinheiro virtual. Para tanto, bastaria permitir que a memória do
cartão fosse preenchida não com o dinheiro da conta do dono do cartão, mas com
o crédito do emissor do cartão. Seria uma velha prática. Os banqueiros criam
dinheiro, multiplicando o valor dos depósitos em empréstimos.
Há uma outra definição possível
de dinheiro eletrônico: "Trata-se de uma partícula virtual que não pode
ser detectada diretamente, mas cuja existência tem efeitos mensuráveis". A
economista Elinor Harris Solomon, no livro Virtual Money, tomou
socorreu-se da mecânica quântica para explicar o conceito de dinheiro
eletrônico. Ela compara: "Com frequência, esse dinheiro ilusório também
não pode ser detectado diretamente, mas seus efeitos são bem reais, como a
volatilidade dos mercados de câmbio e das bolsas". Para Solomon, a
altíssima velocidade com que o dinheiro virtual circula no globo é um obstáculo
à defesa de moedas nacionais pelos bancos centrais.
São Paulo, junho de 2016.
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